Conheça gente que viveu de novo

fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/comportamento/vida-de-volta/

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Páscoa vem do hebraico Pessach, que significa “passagem”. Para os cristãos, a data celebra a ressurreição de Jesus, após sua crucificação (lembrada na Sexta-Feira Santa). Os judeus comemoram sua páscoa no Pesah, festa que relembra a libertação de Moisés e seu povo, antes escravizado pelo Egito. Na Europa, a Páscoa era um rito pagão de passagem, ocorrido em março, marcando a mudança de um rigoroso inverno para um novo começo: a primavera. Nos países de língua inglesa, a Páscoa é chamada de Easter, em referência à deusa de origem anglo-saxônica Eostre, que representa a fertilidade e o renascimento. Mas não importa a religião ou a cultura, Páscoa significa renascimento, e as histórias a seguir mostram que todos podem se reerguer, se reinventar. Ressuscitar, enfim.

Coração sem dor

Em 2008, o professor Asteclínio da Silva Ramos Jr., então com 53 anos e esportista nato, se submeteu a uma cirurgia após descobrir que o coração fora danificado por um infarto que ele não sentiu. A dor e o risco de novo ataque continuaram. Depois de participar de um tratamento experimental com células-tronco, ele voltou a fazer tudo de que gostava:

Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo

“Minha vida foi normal até 2008, quando fiz um exame de rotina a pedido da minha mãe. Descobrimos que eu tinha sofrido um infarto e que parte do coração estava morta. Na época, jogava futebol e tudo, os médicos nem souberam explicar como; eu nem sequer tinha histórico familiar de problemas cardíacos. Sentia eventualmente falta de ar e tive um mal súbito, mas nunca falaram de infarto. Na cirurgia, coloquei três pontes – safenas e mamária. Uma delas não funcionou. As orientações foram que tomasse remédios pela vida toda e me cuidasse.

Daí a sua cabeça vai a mil. Meu medo era que a outra parte do coração parasse e tivesse um infarto fulminante. O cardiologista falou que eu teria limites no esporte, na alimentação. Antes do projeto experimental com células-tronco [do Núcleo de Tecnologia Celular, da PUCPR; saiba mais aqui], senti dores no peito e cheguei a ficar três dias na UTI. Percebi que teria que correr atrás de uma vida melhor porque tudo havia sido feito. Queria viver, mas também fazer as coisas de que gostava. Nessa procura, a médica da minha mulher [Sônia Cristina] comentou sobre o projeto. Da consulta até o recebimento das células-tronco, foram dois anos. As células foram retiradas da minha bacia, cultivadas e reimplantadas pela veia da perna em 2013. Sei que é um experimento, e que poderia não dar certo. Mas o último exame mostrou que as células criaram uma rede de irrigação alternativa no coração. Acho que melhorei muito só pelo fato de fazer esporte, como natação e bicicleta. Pensei que nunca faria de novo.

Sou espírita e encaro essa doença como um alerta. Eu fazia esporte, mas não cuidava da alimentação. Passei 30 anos sem tirar a licença-prêmio para servidores do Estado, sempre preocupado com tudo. Não sou contra dizer que nasci de novo, porque a minha situação não era boa. Nasci de novo quando tive o diagnóstico. Nasci de novo na operação, porque poderia ter morrido na mesa de cirurgia. E nasci de novo ao conseguir o implante. Nasci de novo três vezes, então estou no lucro!”.

Força em dobro

Perder um filho de forma violenta, outro ainda bebê e enfrentar um câncer. A enfermeira Cleonice Goudart (foto acima), 48 anos, passou por essas situações e conseguiu manter-se otimista para poder criar suas outras duas filhas:

"Acho que nunca tive depressão porque não me fechei, procurei as pessoas. Comecei a frequentar lugares beneficentes, como o Pequeno Cotolengo e o Lar Luz Nascente". Cleonice Goudart, 48 anos, que perdeu dois filhos e venceu um câncer, mas conseguiu se manter otimista. Foto: Letícia Akemi / Gazeta do Povo

“Há oito anos perdi meu filho, Dario Luís, assassinado por um amigo que tinha ciúmes da namorada. Ele tinha 21 anos e deixou uma filha que hoje tem 11 anos. Era carinhoso, popular entre os amigos, nunca tinha se envolvido em brigas. Antes disso, meu primeiro filho faleceu, aos cinco meses, no Mato Grosso. Foi uma reação a uma vacina, outras crianças morreram. Lembro que sofri muito, mas eu era uma criança. Tinha 15 anos e nenhuma noção do que estava perdendo. Dario foi meu terceiro filho e nos dávamos muito bem, pois eu o criava sozinha. Ele trabalhava de cozinheiro em um restaurante de comida mineira. Não era de estudar, mas queria cursar Gastronomia. Não deu tempo.

No dia em que ele foi morto, passei mal no serviço; parece que mãe pressente. À noite, antes de ele sair para buscar a filha nos avós, estava garoando e perguntei se não seria melhor ir no dia seguinte. Pedi um beijo e ele deu, brincando que eu estava carente. Quando vieram me falar que haviam atirado no Dario na frente de casa, corri e vi o agasalho clarinho que ele estava usando empapado de sangue. Ele disse “mãe…”. Foi a última coisa que falou. Senti uma dor de cabeça grande, me levaram ao hospital e quando voltei para casa, de manhã cedo, o corpo tinha chegado para o velório. Não lembro do enterro, estava um zumbi por causa dos calmantes. Cheguei em casa, dormi e quando acordei, perguntei à minha filha se era verdade. Ela disse que infelizmente era.

O rapaz que matou o meu filho não ficou preso mais do que alguns meses, por ser réu primário. Mas não consigo pensar em destino pior do que ser um assassino e sua família e vizinhos saberem disso. Fui ao júri e cheguei a questionar o juiz sobre o que faria se um colega desse uma sentença parecida sobre a morte de um filho dele e ele apenas sacudiu a cabeça. Foi quando percebi que teria que achar um jeito de superar essa dor, que nada traria meu filho de volta. Acho que nunca tive depressão porque não me fechei, procurei as pessoas. Comecei a frequentar lugares beneficentes, como o Pequeno Cotolengo e o Lar Luz Nascente, em Fazenda Rio Grande. Sinto-me bem com isso. Ameniza a dor e a falta que Dario sempre fará. Não só eu perdi um filho, muitas perdem todos os dias.

O meu filho morreu em maio de 2007 e em agosto tive uma hemorragia. Meu útero se rompeu do nada. Uma psicóloga me disse que o corpo reage ao sentimento que guardamos. O câncer de mama, descobri em 2012. Tive um abscesso, foi como se o organismo o rejeitasse. Fiz cirurgia para tirar parte do seio e radioterapia por um ano. Está tudo bem. Acredito na psicóloga, mas penso que se eu tivesse gritado e chorado muito, dependeria até hoje de antidepressivos. Preferi do meu jeito. Quem conversa comigo ou com minhas filhas não nota que tivemos essa perda. Não deixamos que destruísse o que nós tínhamos”.

Vitória em milímetros

O humorista Fagner Zadra (foto ao abaixo), 31 anos, do grupo Tesão Piá!, estava em plena ascensão profissional quando uma estrutura decorativa do Festival de Teatro de Curitiba o atingiu na cabeça em março de 2014. Ele ficou tetraplégico, e agora se divide entre fisioterapia intensiva, projetos de inclusão para cadeirantes, os vídeos do canal do grupo no YouTube e o novo show, Rizadra, que estreia neste domingo (5) e tem até piadas sobre a sua condição atual:

“Antes do acidente, eu tinha o meu planejamento meio pronto. Estava com dezenas de shows marcados, abrindo uma empresa de eventos, terminando o curso de Engenharia Civil – acho bom dar conteúdo às duas áreas do cérebro. Mas meu objetivo era ganhar o Brasil criando humor.

Eu ia estrear no festival o meu solo. Fui à abertura para reencontrar amigos e ver gente, depois de mais um dia trabalhando como um cavalo. Parece mentira que, na hora em que vi o enfeite [de isopor e gesso, na entrada do local], tive medo de passar por baixo. Costumo olhar para a estrutura de prédios e comentei com um assessor que aquilo poderia cair em alguém. Daí, houve uma série de coisas. A produtora me chamou para assistir ao espetáculo, mas sempre pedia tempo para falar com um amigo. Quando fui, não havia mais lugar, então resolvi comprar pipoca. Cheguei a uma bancada, o pipoqueiro estava de saída. Tive de atravessar o salão para ir à outra. Tinha me esquecido da tal bola, e foi quando ela caiu. Senti meu corpo se debatendo sem querer e entendi que tinha quebrado o pescoço. Mas tentei manter a calma para fazer meu pulmão funcionar e me concentrei para não pegar no sono. Pensei: ‘estou tetraplégico, não quero ficar com mais sequelas’. Lutei contra a morte e percebi isso, racionalmente não era para ter sobrevivido. Falei para o médico me deixar vivo que o resto eu consertaria com o tempo.

Sinto que me recupero milímetro por milímetro e tenho certeza de que voltarei a andar. Fora isso, tinha convicções sobre a vida e estava até escrevendo um livro. Mas hoje vejo que era uma ideia falsa. Eu dava atenção a coisas que me faziam perder tempo. Era perfeccionista, mas entendi que nunca nada será perfeito e nem deve. O perfeito é até feio porque faz você deixar de almejar coisas. Nunca tinha convivido com cadeirantes e vejo quantas dificuldades eles enfrentam.Tenho apoio para o meu tratamento, mas há quem dependa de cadeira de rodas do SUS. Agora sei que, quando usa óculos escuros, um cadeirante é tratado também como cego, sabe-se lá por quê. Por isso tenho projetos para esse pessoal [entre eles, um site com orientações] e incluí piadas para eles no meu novo solo. Não fazer isso seria uma forma de exclusão”.

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O dom de se doar

Na música “O Amor”, que Caetano Veloso fez sobre um poema do russo Vladimir Mayakovsky e é lindamente cantada por Gal Costa, um grito se repete: “Ressuscita-me”. É como se fosse uma necessidade humana visceral.

A ideia de ressuscitar é fecunda para a vida humana e as religiões a representam de diversas formas. Um exemplo é o mito de Osíris, dos egípcios antigos. Estraçalhado pelo irmão, ele tem o corpo reunido pedaço por pedaço pela mulher. Os hindus creem em uma trindade: Brahma, que cria; Shiva, que destrói; mas Vishnu reconstrói, ressuscita. Esses símbolos são ainda inerentes à natureza: as estações que se sucedem, o sol que renasce todos os dias.

Dentro do cristianismo, a Páscoa é mais importante do que o Natal. Ela nos leva a uma reflexão existencial profunda e menos biológica. Tem a ver com reconstrução e renovação, algo em que a humanidade pouco conseguiu avançar porque a nossa cultura é marcada pela troca, pelo descartável. Pratica-se mais a morte, o descarte, a substituição imediata por outra coisa. A ressurreição é complexa porque não representa a volta a um estágio anterior; antes, significa refazer. A ressurreição de Jesus Cristo é a dramatização de algo que ocorre no cotidiano quando conseguimos superar dificuldades por vias às vezes impensáveis.

Outra característica da ressurreição, também sensacional, é que ninguém ressuscita a si próprio. Você é ressuscitado. Ressuscitar é vital, mas não individual. Pressupõe um outro. Há pessoas que, depois de uma enorme sensação de perda, ou de uma experiência profunda de morte, arranjaram alguém: outra pessoa, um animal ou a entrega à arte ou a uma causa.

Quando a pessoa sai dela mesma, possibilita isso. A exclusiva relação de mim comigo mesmo é geralmente pobre, doente. Quando se sai de si mesmo, o mundo se abre e dá espaço à natureza, à arte, à amizade, ao amor, à solidariedade. Para os cristãos, Jesus ressuscitou ao se entregar: primeiro a nós e, em seguida, ao Pai.

Sem querer moralizar o tema, considero que uma cultura individualista como a nossa fecha a pessoa dentro de si mesma. Passa a impressão de que nos bastamos, mas na verdade é o outro que nos acrescenta. Ressurreição exige esforço, paciência, amadurecimento. É o dom de se doar.

Jorge Claudio Noel Ribeiro Jr., filósofo e teólogo, é professor de Ciência da Religião da PUCSP.

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